terça-feira, julho 28, 2015

Anatomia

“Um amigo meu me recomendou um massagista que é médium”, disse M., o que não soou tão estranho assim porque tem aquele personagem que é atendente na padaria e poeta e todo mundo pode ser um monte de coisas ao mesmo tempo, parece. Isso porque comecei a contar da nova fisioterapeuta: ela ficou comigo duas horas, DUAS horas, me virou do avesso, apertou tudo o que era passível de ser apertado e rabiscou meus pés e minhas costas (e não apagou depois), em todos esses anos nunca vi isso, e discorreu longamente sobre travesseiros, alturas, texturas, rolinhos alternativos, tecnologia da Nasa, plumas, deitar de lado só se abraçar um lance, de bruços nem pensar, de barriga pra cima é mais recomendável. Antes de dormir pensei: fudeu, vai ser pior do que se tivesse alguém ao lado, fosse sobrinho ou amante ou qualquer outra pessoa que eu ficaria monitorando de cinco em cinco minutos.

Uma vez acordei com o edredom meio queimado porque adormeci em cima de uma bolsa elétrica dessas que em 1 minuto ficam quentes, em 3 você apaga, em 7 tem ameaça de fogo à própria cama. Uma vez acordei e mal consegui me mexer porque uma contratura tomava tudo – escápula, romboide, escaleno, trapézio, cervical, maxilar, ombro, braço, cotovelo –, lado direito morto, e isso passou a se repetir desde já nem sei mais, pelo menos uns 8 anos, uma dor crônica que não aparece em radiografias e que é descartada com um “mexa-se de vez em quando, levante da cadeira, dê uma volta”, como se tudo fosse uma questão de sair andando pelo escritório, buscar uma água, tomar um café. Uma vez acordei e pensei que devia haver um serviço para domingos, alguém que se encarregasse da água, do milk-shake, do pão, do disco do Caetano, do chocolate, do chá, da Nutella, mas já tem, se chama mãe, mas não dá pra explicar a origem de todas as dores pra mãe porque umas são ortopédicas, outras não. E não dá pra evitar as despedidas, o vazio que fica na parede porque você resolve dar dois quadros de presente antes do voo, o buraco que fica no pé que foi aniquilado por um salto agulha na noite anterior, e todo o David Bowie que há no mundo, e “Freedom 90” fazendo de copos microfones e da pista de dança casa e dos amigos coração, e de repente os copos-de-leite que foram levados amarrados uma semana antes na bici porque o rapaz não tinha troco, nem tão de repente assim porque já fazia mais de meia hora imóvel no sofá, não resta dúvida, estão marrons.

A anomalia na bacia – coxofemoral, ilíaco, psoas, adutor, acetábulo – deve ser resultado de hérnia de disco e agora não posso nem mais cruzar as pernas, nem conversar de lado, nem dobrar a perna esquerda e sentar sobre ela, e vamos ver, não tenho um diagnóstico, preciso entender como seus tecidos reagem e seguir uma ou duas hipóteses mas certamente a gente tem que reverter esse padrão cervical invertido, recuperar a lordose superior perdida, estica essa perna, vocês que são muito alongados, e vira os olhos como se fosse fazer “pfff” depois, seu teste de frouxidão ligamentar deu negativo, mas todo esse en dehors na bacia, pombas, pensei, não serve pra nada mesmo, nem pro balé, porque chegava na altura do joelho e a rotação sumia como mágica, enquanto ela mete o dedo contra o meu pescoço e eu vejo es-tre-las e tudo o mais que Carolina não viu, uma rosa, um samba, tudo lindo. Não faça nada, e eu me contorcia na maca, conforme for te libero pra natação em duas semanas, mas com ressalvas, não alongue nada sob hipótese alguma, jamais puxe a cabeça pro lado, tem um clube ali ao lado da sua casa, o tempo já vai melhorar. Onde será que essa mulher mora? Há séculos não tem inverno, há séculos estamos em julho.

D u a s  h o r a s , o tempo passa com espaço duplo às vezes, e no domingo eu achava que a coisa mais triste do mundo era tirar maquiagem porque ainda não tinha chegado esse dia em que apenas não há possibilidade de habitar meu corpo desconjuntado. Sente-se bem sobre os ísquios, sinta o chão, as partes moles, as articulações, entregue os olhos no rosto, não é lindo isso?, ai que saudade das aulas de dança, de Cecilia, de todo mundo que já foi embora de novo.

“Quero assinar esse feed da fisioterapia”, M. disse, e à noite calculei que tinha sopa de abóbora para uma encarnação, além de ter contado 12 copos de requeijão consumidos ao longo de 12 meses. Não é nada, mas talvez seja alguma coisa. 




quinta-feira, julho 16, 2015

Xô, chuá!

No fim da aula de dança Paulinha vem e dá aquela coçadinha na minha cabeça, aquela que a fisioterapeuta também fazia quando eu chegava totalmente empenada ao consultório e que funcionava como espécie de prêmio, aquela com as pontas dos dedos pelo couro cabeludo todo, aquela que me deixa num misto de encantamento e invalidez temporária e que, portanto, parece paixão fulminante.

Abro a porta de casa assim, flutuando, mesmo que tenha encarado a São Clemente, e vejo na mesa da sala uma bagunça de farelos e substâncias fétidas que por sorte não foram feitas sobre homeopatia nem literatura. Imaginei uma série de questões mundanas quando resolvi morar sozinha: os serviços que sempre param de funcionar; um possível vício em televisão; fome; alagamentos e/ou vazamentos involuntários; solidão. Definitivamente não adivinharia que sofreria de macacos invasores e ladrões de banana, aveia e cream-cracker.

As visitas começaram pouco antes do meu primeiro verão no Horto: as criaturas entravam e saíam por um basculante que ficava quase totalmente bloqueado por 3 vasinhos de violetas, ou ao menos foi disso que suspeitei, visto que a janela de cima estava constantemente fechada. Rosário, a diarista do 202, um dia me alertou: “Julia os macacos entraram na sua casa e saíram com duas bananas debaixo do braço. Macaco-prego, Julia, grandão assim!” Pelos meus cálculos, era impossível que um macaco-prego entrasse por aquela abertura sem derrubar nem uma folha, nem uma pétala das violetas, o que me fez desconfiar de que minha casa, na verdade, era invadida por gatos. Quando, numa manhã sonolenta, descobri uma marca de mãozinha na parede, na altura correspondente à alça do vidro da janela, desconfiei de que fossem mesmo macacos, treinados pela Socila ou pelo equivalente animal da instituição, afinal a janela permanecia fechada, o que só podia significar que eles entravam e batiam a porta ao sair.

Pasma com a educação e inteligência dos meus macacos, telefonei para um amigo fotógrafo que prometeu me ajudar a montar um esquema de filmagem para flagrar os meliantes. Nos meus devaneios eu teria registros maravilhosos dos macacos em casa, faria edições com uma trilha sonora maneirinha e também fortunas com o novo viral do YouTube. Bel botou fé e disse que faria camisetinhas à la “Sexy Boy”, e desde então a minha vida foi tomada pela música do Air a cada banana surrupiada ou qualquer outro sinal da presença de macacos em minha residência.

Quando dezembro, o calor e as cortinas da janela chegaram, os macacos sumiram e a minha popularidade ficou bastante ameaçada: pessoas me encontravam na rua e perguntavam por eles, os amigos no trabalho apuravam diariamente, mensagens chegavam por redes sociais cobrando as invasões animais no meu apartamento e de repente eu parecia tão desinteressante perante a sociedade, que nem mesmo se preocupava em disfarçar o “então tá” ao notar que eu não tinha nenhum relato novo. Num exercício de livre associação imaginário, as pessoas diriam "Julia" ao ouvirem a palavra "macaco".  Passei a me sentir limitada a essa única possibilidade existencial, e também passei a fechar o basculante. Não foi fácil perder amigos e bananas...

Os macacos voltaram no outono, depois de meses em que me convenci de que a cortina da sala os intimidava. Entrei em casa, peguei o telefone sem fio e no meio da conversa fiquei meio gaga: "Alguém entrou aqui." Um pacote de cream-cracker estava estraçalhado em cima da mesa, pedaços pelo chão. Mas por onde? Como? A porta de correr que isola a área de serviço estava marcada por mãos de macacos. Eu havia usado a máquina de lavar roupa um dia antes, provavelmente esquecera a porta aberta, os macacos entraram pela janela do gás da área e encontraram o caminho livre. Bingo!

Foi nessa altura das invasões que Bruna achou que essa relação estava desigual e que eu deveria ter algum tipo de benefício em troca da alimentação orgânica que involuntariamente oferecia a eles. Minha irmã concordou e sugeriu que eu pedisse uma bolsa-Ibama. De Paris, outra Bel achava melhor eu assumir de uma vez o abastecimento de uma família inteira de macacos-prego. Em Paraty, Lucas ria enquanto eu tentava me desviar das abelhas do Coupé: “Julia e o mundo animal”, ele disse, e no dia seguinte dei de cara com um macaco na minha sala, numa manhã em que não havia dúvida de que eu havia fechado a porta de correr na noite anterior.

O macaco atravessou a cozinha correndo e pulou para a janela do gás da área de serviço, e lá estavam outra vez as pegadas na porta que eu tinha limpado cerca de 8 horas antes. Dei um grito de susto e me sentei no sofá com o coração aos pulos: paixão fulminante e bichos, são diversos os fatores que desencadeiam ataque cardíaco, e quanto eu já escrevia para a minha chefe explicando que chegaria atrasada porque dentro de alguns minutos teria um enfarto, vi o macaco botar a cabeça pra dentro de casa pra verificar se eu ainda estava ali. Ficamos assim durante uns segundos, ele sumia e reaparecia pela janela, como quem quer voltar, eu inspirava e expirava tentando restabelecer o pulso. Aos poucos me aproximei da janela e o macaco, vencido, escapou para o vão do prédio, onde uns 3 ou 4 macacos-prego gigantescos o esperavam. Pareciam gorilas, e calculei que se por um lado a minha popularidade já se estabilizara outra vez, por outro o risco de doenças coronarianas aumentava. Foi quando decidi comprar um trinco para a porta que os bichos abriam sem maiores dificuldades.

Às 7:48 de uma manhã de quarta-feira Edilson, o faz-tudo que usa cardigan, tocou meu interfone. Ele estava com o irmão que não usa cardigan, mas que é igualmente simpático e fã de Nespresso, e tomamos um café enquanto eu explicava pra eles o drama selvagem. Edilson, o faz-tudo que usa cardigan, mas sem cardigan naquela ocasião, e o irmão, começaram a me contar histórias de macacos. Na mais trágica de todas um macaco era encontrado morto numa banheira de um apartamento do Jardim Botânico. Causa mortis: excesso de consumo de xampu. Se não fosse um bom ajudante de faz-tudo, o irmão de Edilson, o faz-tudo etc., daria um bom ficcionista. Às 8:15 Edilson me perguntou se podia fazer barulho com a furadeira: “Vai lá e arrasa, Edilson”, eu disse, pensando que esta é, por enquanto, a única vingança ao meu alcance contra a família barulhenta do apartamento da frente. Larguei Edilson e o irmão e dei a triste notícia para Bel, Bruna, outra Bel e todos os outros amigos que também já estavam apegados aos meus macacos. Tal como John Lennon, anunciei: o sonho acabou.


Às vezes no silêncio da noite eu fico imaginando todas as conversas que terei daqui pra frente: o último livro que li, a praia de domingo, a festa junina da rua, a chatice que é a segunda temporada de True Detective. É uma liberdade que me assusta, até, ter que criar pautas e provar que meu carisma vai além dos macacos, não deixar a peteca cair. Às vezes no silêncio da noite, também, eu fico imaginando macacos adestrados, desses que já deixam a cebola e o alho picados ou que, no auge do devaneio, vêm dar aquela coçadinha na minha cabeça quando não consigo dormir. 


terça-feira, julho 07, 2015

Paraty

As abelhas voam por entre os copos e demais utensílios sobre a mesa e aperto o botão para chamar o garçom. P. repete imediatamente a operação, e quando ele chega para nos atender explica que basta uma chamada. Seguro nas mãos o livro com a dedicatória que ela acabou de escrever a caneta preta e que me define como “viajante e sorridente”. Gosto de mim assim. Eu peço uma água, P. um café com leite. Há mais 3 pessoas conosco. Passamos uma parte daquela tarde em cadeiras amarelas de plástico numa praia decididamente bastante imprópria. Um sujeito muito branco e muito estrangeiro passa sem camisa, sem sapatos, sem saber que aquilo ali não é uma boa ideia de mergulho. Ainda por cima bem diante de nossos casacos e de uma tosse.

Três dias depois me reconheço na página 23 como “minha amiga”. Gosto de mim assim também, e agora sei como é quando as conversas reais viram diálogos em livros.


É por isso que insisto.