quinta-feira, maio 29, 2014

We were on the run from our own desires too, probably, whatever they were. It was best to laugh it off.
The way we laugh. At our own desires. The way we mock ourselves. Before anyone else can. The way we are wired to kill. Ourselves. It doesn’t bear thinking about.

Deborah Levy, Things I don't want to know


terça-feira, maio 27, 2014

Casas Bahia - vol. 2


Tenho boas lembranças de sofás: os da casa de Petrópolis da Manu, por exemplo, abrigavam uma enorme quantidade de gente, o que os tornava sempre locação para as fotos de grupo que fazíamos em cada fim de semana por lá. Era uma época em que a vida era feita de fotos de grupo e você tinha sempre que tirar mais de uma, caso alguém piscasse, mas menos de 4, porque não tinha tanto filme assim. Os sofás da casa de Petrópolis tinham estampas de flor, tecidos adamascados e almofadas com franjas e veludos. Eram calmos, cheirosos e davam uma certa vontade de contemplação e de cochilo à tarde, e ainda assim éramos capazes de emendar dias inteiros em longas rodadas de Nintendo. Ali naquela casa tudo parecia saído de uma revista de decoração, só que tudo era muito melhor, porque existia.

Gostava, também, do sofá de Penedo com seus braços robustos e que durante um tempo tiveram a altura ideal para eu cochilar com a cabeça apoiada, quentinha da lareira, dos meus pais ou dos cães que sempre habitaram aquela casa. Eu não saberia falar sobre as cores e desenhos do sofá de Penedo sem recorrer às fotos, e talvez ele nem fosse tão robusto e acolhedor assim, mas algumas memórias de infância ficam nubladas e as coisas adquirem um tamanho bem maior, como se nossas pernas ficassem sempre a balançar, mesmo que você já tivesse 1m55 de altura. 

Nos sofás da casa da Marcelle, tantas coisas: se falassem, ai de todos nós que dormimos neles antes, durante e/ou depois de festas, acordando amassados, cheios de bafo e ressaca antes que os pais dela voltassem para casa, e antes, portanto, das broncas que eventualmente levávamos. Eram incansáveis, aqueles sofás, e resistentes a todas as nossas tentativas inconscientes de destruição. 

E o sofá da Joatinga: lembro de ter dedicado um texto a ele num extinto blog. A sala da Clara, por ser a primeira de nós a morar sem os pais, foi uma espécie de confessionário, ponto de encontro que testemunhou a costura resistente de amizades que até hoje nos fazem correr pra ele – nos extremos alegres e tristes, ou mesmo por razões corriqueiras e medianas – ainda que agora habite outro bairro e seja, de fato, outro sofá, mas igualmente convidativo. Poço de afetos, o sofá da Clara, ou melhor, a dinastia de sofás da Clara, tem a medida certa de cada um que senta ali, como se fosse capaz de se refazer em mil densidades de espuma ou ângulos para acolher o visitante da melhor maneira possível. Deve ser genético.

Eis que chegou a minha vez de ter o meu very own sofá, e boa parte dos amigos foi taxativa: você TEM QUE IR no Fernando Jaeger. Eu era favorável ao Fernando Jaeger, visto que passara boa parte do mês anterior jogada em cima de um exemplar dele. Mas, como dizem, rapadura é doce, mas não é mole não – e a máxima se aplica a esse objeto fundamental da casa, e depois de testar sofás pelo Rio de Janeiro concluo que aquele que eu andava frequentando só pode ser um acidente de percurso. 

Explico: houve um fato anterior aos testes, e que acabou definindo os resultados, além de redirecionar toda a pesquisa: fiz sexo num sofá. Foi sem querer. Quer dizer: foi inesperado, querência não faltou. Em um momento eu estava sentada comportadamente num sofá (aparentemente sem grife ou época identificáveis), conversando com o dono do sofá (aparentemente tão bem comportado quanto eu), e no outro eu estava, bem, fazendo outras coisas com o dono do sofá. No sofá. E depois, bem, adormecemos no sofá, porque parecia impossível deixar o sofá aquela noite. 

O caso é que no dia seguinte, já distante do sofá em questão, eu fui ao Fernando Jaeger. E o pior: a Maíra foi lá antes de mim. A Maíra é a melhor e a pior companhia para ir com você fazer compras de itens para uma casa. Melhor porque ela fica igualmente animada no Fernando Jaeger e na Leroy Merlin: ela vê potencial tanto em uma quanto em outra loja. Pior porque ela nasceu punk e acha que tudo é passível (e possível) de ser feito com as próprias mãos (dela). Portanto você pode passar uma tarde com a Maíra, entrar em 15 estabelecimentos comerciais, não comprar nada e fazer planos de construir uma mesa, uma escrivaninha, 4 cadeiras e 2 luminárias. Nem as tomadas ela deixa você levar, e não porque ela queira fazer, mas porque no Saara (ela é uma wikiSaara) tem e custam metade do preço. 

Pois bem: Maíra foi ao Fernando Jaeger e quando eu cheguei lá sentei em meia dúzia de sofás, duvidei da qualidade das mesas, achei que as cadeiras todas pareciam meio frágeis e telefonei pra ela pra desabafar minha decepção. Gongamos todos os móveis: não era possível que sofás fossem feitos de uma espuma dura, de grampos rocama (Passa a mão embaixo deles e você vai sentir!, ela exclamava, revoltada) e de um espaço tão estreito que nem dava muito pra querer ficar com sono, e não era possível que as mesas todas parecessem um grande compensado coberto com uma folha de alguma coisa ou que aquelas mesinhas de canto onde nem caberia um livro da L&PM custassem o preço que custavam. Mas mais grave ainda era que vários amigos e conhecidos estivessem sustentando sofás em que ninguém ia conseguir trepar com ninguém. E não há chance de alguém dormir no meio de um filme chato num sofá do Fernando Jaeger e, tragédia máxima: não vai ter conchinha num sofá do Fernando Jaeger

Parte do tempo que habitei aquele sofá do Fernando Jaeger que agora me parece um acidente (visto que é espaçoso, confortável e propício a sexos e conchinhas) eu estava às voltas com um livro de crítica literária que, na impossibilidade de classificar certas obras, acabava instaurando uma nova categoria para elas: a do inespecífico. Quando desliguei o telefone com Maíra eu experimentava exatamente essa ideia: aquele sofá era um híbrido, um registro indeterminado, um território instável que já não se podia afirmar tratar-se de um sofá ou de um banco – duro, desconfortável, repelente. E ao mesmo tempo todo aquele linho, aquelas cores, aquela forma. Meu único alento era saber que a Maíra estava no meu time e que tinha observações ainda mais certeiras que as minhas: era capaz de eleger sofás para surubas, ménages e quaisquer outras configurações sexuais sobre as quais eu nem pensava. 

Naquela tarde seguinte à ida ao Fernando Jaeger eu tratei de difamá-lo entre os amigos que haviam sido tão enfáticos e comprei um sofá numa loja caretíssima e tradicional; de molas, cheio de costuras e com espaço: para simular uma tarde doente em casa, faltar o trabalho e dormir loucamente com a tv no mudo; convidar para a minha casa o dono daquele sofá, responsável direto por eu ter gastado quase um tanque de gasolina à procura de um sofá onde pudéssemos, quem sabe, com um pouco de sorte e surpresa, reencenar aquela noite. 

A Maíra não estava comigo quando comprei o sofá, é claro, afinal ela não teria deixado. O meu sofá, eu acho, reúne um pouco do que aqueles sofás citados aqui tinham: um magnetismo, um sim a postos, um carinho na nuca quando você chega tarde do trabalho, um quentinho na medida para o inverno rigoroso do Horto. Sobretudo, ao contrário da melhor literatura contemporânea que te deixa invariavelmente desconfortável, o meu sofá é canônico, e logo nele a conchinha tem vez, afinal disso não abro mão: existe amor na minha sala.


quinta-feira, maio 22, 2014

Casas Bahia

Vladimir: Ajudou a passar o tempo.

Estragon: Teria passado igual.

Vladimir: É. Mas menos depressa. 


Samuel Beckett, Esperando Godot

É uma coincidência que Stephanny (e estou chutando a grafia) tenha me atendido outra vez naquele dia, ou são os astros, pensei, mas a ligação caiu quando – na porta de uma loja concorrente, em frente a um trocaço de figurinhas da Copa que mais parecia um flashmob na saída do metrô Uruguaiana – eu estava prestes a comprar uma geladeira e um fogão. Quando você telefona para uma das lojas da Fast Shop e nenhum vendedor responde, a ligação é direcionada para o televendas e lá estará Stephanny. Todavia, ao ouvir o tu tu tu do fim da linha, rumei para o metrô, venci a turba de adultos infantilizados e almocei uma empada no caminho de volta para a firma.

Postada em frente ao computador para conferir pela décima vez os modelos da geladeira e do fogão, Stephanny ressurge dizendo “olá, senhora Julia” antes mesmo de eu me apresentar. “Me dê logo um telefone de contato caso a ligação seja cortada de novo”, e a partir de então o caos se instala na minha cabeça: por mais que Stephanny e eu apertássemos os botões de refresh de nossas máquinas, o fogão dela tinha um preço, o meu tinha outro, embora fossem os mesmos. Era uma diferença de alguns reais, mas naquele momento, parecia, Stephanny habitava uma realidade à qual eu não tinha acesso, e vice-versa, e isso me perturbou muito. Ela, entretanto, parecia tranquila em sua bolha impenetrável, e me ofereceu um desconto. Desisti da compra quando ela passou o preço do frete: “Na loja não tinha preço de frete, Stephanny”. “Mas na loja não tinha o seu fogão, senhora Julia”, ela diria, se soubesse, e era estranho mesmo que por telefone o fogão existisse, mas por encontro analógico não. Desisti de Stephanny, apesar de sua boa vontade, porque àquela altura eu já duvidava de toda a logística do estabelecimento comercial em questão, pois paralelamente chegava no meu celular uma mensagem da minha mãe dizendo que a máquina de lavar, prometida para ser entregue entre 15 e 16h, não tinha aparecido e não apareceria mais.

Fui pela segunda vez à Fast Shop. Treinei o meu melhor “escuta aqui”, mas no curto intervalo da mensagem da minha mãe e de encerrar o dia editorial esbarrei  num discurso de formatura que George Saunders escreveu (para uma turma sabe-se lá de onde) sobre ser gentil uma variação bem menos empolgante do Wear sunscreen. E amoleci.

Contei pro vendedor da loja que meu pai tivera um piripaque três dias antes, e que se a máquina de lavar não fosse re-entregue no horário certo quem ia ter um treco era eu. Não que ele se importasse, mas a perspectiva da compra de mais 2 eletrodomésticos abriu a cabeça de Luiz Henrique: ele verificou no “sistema” que a (não) entrega da máquina tinha sido feita naquele mesmo dia, às 11 da manhã, horário em que, claro, não havia ninguém em casa, visto que. Luiz Henrique desculpou-se potes, disse que isso não voltaria a acontecer e eu, bem: acreditei. 

Então uma nova batalha teve início: os preços da geladeira e do fogão do Luiz Henrique eram diferentes dos preços da geladeira e do fogão de Stephanny, que eram diferentes dos preços do site que eu via, que também não batiam com os preços do site que o Luiz Henrique consultava, e tudo pareceu tão complexo quanto entender quem é quem na família Buendía. Life is like a box of chocolate, afinal, e o “sistema” é, possivelmente, o mal do século.

Voltei pra casa, e porque era o único que tinha em casa - e andava bastante ocioso - acendi uma vela para um Santo Antonio quebrado e lembrei de uma conversa que tive com Tiago há pouco tempo.  Falávamos sobre nossos planos de aposentadoria: ler todo o Proust, ler toda a comédia humana do Balzac, ler todo o Machado de Assis (o original, não esse novo facilitado), ler todos os livros que compramos nas promoções da Cosac Naify ano passado e tentar ficar em dia com toda a música que foi composta depois dos Strokes. Se a produção cultural mundial parasse por uns anos, pensem só, a gente conseguiria absorver uma parcela ínfima do que tem sido feito e livros nunca antes resenhados teriam suas chances nos cadernos de literatura, e músicas nunca antes escutadas teriam suas chances nas pistas de dança, e os últimos 10 anos não pareceriam tão estrangeiros, além de que a virada do século XIX para o XX poderia ser finalmente apreciada com a devida atenção. Tiago planeja, também, jogar dominó na praça. Eu não tenho tanta ambição: o que eu queria mesmo era conseguir um fogão. Não na velhice, agora.

Então me ocorreu que as esperas inúteis são como um teaser da aposentadoria. As coisas nunca chegam, cabe a nós enxergar o maravilhoso disso: a máquina de lavar é o meu Godot, e ele é rizomático: se multiplica pela geladeira, pelo fogão, pelo sofá, pela estante e por tudo o mais que uma casa precisa ter para se configurar como tal – e que nunca terá. Livros são textos que nunca se acabam de escrever, lares são configurações que nunca se erguem completamente. Já penso em esperar coisas pelos meus amigos. Há uma nova profissão a ser inventada, e tudo de que precisamos é uma boa poltrona: carpe diem, boys. Seize the day.  


quarta-feira, maio 14, 2014

Porto Alegre - vol. 2

Depois de Tudo:
a cada homem a amargura final dará uma piscadela.
Como no cinematógrafo – a mão na testa, o rosto virado 
para trás –, o corpo tireóide, ascendente e descendente, 
será um índice no mar solitário da lembrança.
Pablo Palacio


Fiquei derrubada 3 dias e até hoje as pessoas que me encontram dizem “você está com uma carinha...”, e ao ouvir as reticências, completo logo: de outono. Estou com uma carinha de outono. É essa combinação de alergia e de tudo que cai: os vasos de hortelã que estavam frondosos amanhecem no chão, as flores que estavam próximas da janela acordam sem pétalas e até as epígrafes têm sido meio trágicas aqui e ali. Fico submersa no meu edredom: leio um texto maravilhoso em que Alan Pauls discorre sobre sovacos (não tá fácil para as axilas, ele diz), converso com B. sobre as polêmicas do dia (dos embates literários às celebridades), pesquiso sobre geladeiras, fogões, máquinas de lavar. Não tenho nenhuma vontade de escolher panelas.

Tenho, sim, vontade de fazer mesmo uma festa de arromba para inaugurar a casa, mas é só pisar ali e ser tomada pelo silêncio, pela pacatez das coisas (“pacatez” existe?), pelo clima bucólico e parece que aquele canto é uma rota de fuga, um desses espaços que ficam sob as cobertas e onde se escondem marcadores de livros, canetas, vitaminas efervescentes, fones de ouvido e melodias de Satie: coisas que todo mundo sabe mas que eu quero que sejam só minhas, pelo menos durante um tempo: deixar tudo quieto e entender como é que se conquista um território. E só então: encher a casa de luzes coloridas, e depois, quem sabe, convidar alguém para dividir a cama comigo. 




sexta-feira, maio 09, 2014

Porto Alegre - vol. 1


Talvez eu tenha um fraco por varandas, e certamente isso tem a ver com o fato de ter tido uma, aliás, 3, por tantos anos: ver o céu, saber o dia, acertar a roupa, secar toalhas e cães ao sol, correr de chinelo pra chuva e fingir que aquele pedaço aberto era a casa de campo pelo tempo que durasse uma tempestade de verão. A sua tem essa vista a tiracolo e em instantes posso imaginar toda a vida que eu teria se viesse parar aqui nas redondezas e não no meio do mato onde fui encontrar. Consigo imaginar todos os cafés que tomaríamos e que seriam reprovados no meu crivo, consigo ver os domingos na praia – você virada pra um lado lendo um livro, eu com os pés meio enfiados na areia lendo um outro – e  outras tardes em que eu teria que me conformar em levantar da sua rede, caminhar até em casa e prender na parede mais uma página ou frase preferida de um texto preferido. 

Ontem pensei demais em você: encontrei A. na livraria e ela me perguntou tantas coisas que quando me dei conta estava contando pra ela da solidão que senti quando escrevia aquelas 30 páginas sobre Pina. Contei a ela de como eu tinha uma pilha de perguntas que só crescia, de como comecei a achar maluca essa paixão que também só aumentava e que era só minha, de como de repente não fazia sentido desembaralhar palavras para falar de um assunto que ninguém queria saber, de desejos que ninguém devia sentir, de corpos que ninguém iria dançar. A. me olhava com aquele riso meio de lado e seu sotaque gaúcho: é isso mesmo, não tem mais volta, ela disse, entendendo – muito antes de mim – onde é que esses caminhos vão dar.

Entrei num taxi com as palavras de A. na cabeça, uma vontade de te perguntar se você também acha irreversível, uma saudade das suas gírias e a sensação de que amanhã terei que ficar longe de varandas e qualquer outra possibilidade de brisa ou vento, afinal é outono e eu estou feliz demais para me gripar justo agora.