domingo, março 31, 2013

Desvairadamente


quando tem o seu cheiro
dentro de um livro
Dentro da Noite Veloz.

Adriana Calcanhotto em Vambora

 

“Pela passagem de uma grande dor”, página 36: é o quarto conto de Morangos mofados, reeditado há 8 anos atrás. Meu exemplar já guarda certo cheiro de tempo.

Li Morangos dia 15 de novembro. Em dezembro uma amiga leu o meu livro: eu pedi que ela escrevesse seu nome e a data na folha de rosto, debaixo da minha própria marca. Acho lindo livro de biblioteca, daqueles que contém cartões datilografados por máquina de escrever, onde se listam os usuários e empréstimos. Daqueles que não existem mais. Eu achava que o meu Morangos podia tentar ser antigo. Em julho de 2007 foi a vez da Carol deixar sua assinatura.

10 páginas antes, e que é a segunda de “Os sobreviventes”, há 14 linhas sublinhadas a lápis: é o recorde de intervenções. Talvez eu ainda respondesse que este é o meu conto preferido da vida. O que pode ser falso. O que pode ser verdadeiro. O que eu posso nunca saber. Mas quando penso num momento fundador da minha trajetória de leitora, é para estas páginas que eu volto.

Eu estava apaixonada por um sujeito que era apaixonado por Caio. Isso interfere? Ambos se foram. O amor ficou. Os amores, todos.

A edição traz, nas páginas finais, uma carta de 22 de dezembro de 1979, endereçada a Zézim. Outro dia, à saída da aula, Beatriz e eu concordamos que é a mais bonita de Caio. Ela está, também, na coletânea de cartas, um volume que roubei da biblioteca de uma amiga em 2010, e cuja falta ela nunca sentiu. Heresia: a indiferença, não o furto.

Pouco antes da conclusão com Beatriz, Rodrigo dizia da sua experiência em ler o livro seguindo as orientações sonoras de Caio. “Pela passagem” pede Satie. “Os sobreviventes”, Angela Ro Ro. Jacques Loussier Trio executando as Gymnopédies é Satie o suficiente? Ou seria melhor o Nelson Freire? É a mesma coisa? E especificamente: qual música da Ro Ro?

Complicado fazer duas coisas ao mesmo tempo, e o meu livro me causa espirros. E uma saudade, do tipo que rasga: há 8 anos atrás, no café de uma livraria, conta paga, cadeiras arrastadas para trás: ele tirou do bolso uma flor, dessas roubadas de um canteiro na esquina. Murcha e despetalada, foi a primeira de uma série.

Na parte interna da contracapa de Morangos mofados anotei o telefone de alguém. Semana passada apaguei o número dele do meu celular.

Nem sei se a Carol gostou do Caio. Provavelmente não tanto quanto eu. 

2005 foi um ano bom.


 

quinta-feira, março 28, 2013

Huis Clos

Diante da perda da Clô Orozco, minha estilista brasileira preferida, ressuscitei o Meu paletó para um pequeno texto. Meio bobo, meio triste, uma breve homenagem. Aqui.



segunda-feira, março 25, 2013

Quem mexeu no meu pavê



A piada é óbvia, clichê e manjada, mas inevitável em se tratando de uma pequena ode a doces: madeleines não me fariam escrever sequer 7 linhas, quanto mais o grande romance da modernidade. Não que eu tenha pretensões. O que eu queria mesmo era engordar, e no meu cânone alimentício não há espaços para delícias proustianas. Meu elenco seria feito de uma torta-mousse inesquecível, exageradamente consumida entre os anos de 1996 e 1998. Ou um pouco antes, ou um pouco depois.

Do que me lembro dela: o preço exorbitante de R$ 5,00 por fatia obrigava-nos a dividir uma, a minha melhor amiga e eu. Com o mesmo valor, naquele tempo, comprava-se uma oferta inteira do Mcdonalds por pessoa, um festival de açúcar e gordura trans individual, pra agora ou pra viagem. A torta-mousse era bicolor, composta de chocolates preto e branco, e ainda carregava outro binarismo, porque era uma mistura de bolo com camadas mais pastosas. Era recoberta por raspas de chocolate que se volteavam nas extremidades, e sempre pedíamos “uma raspinha a mais”. Sentávamos na mesa redonda e pequenina que imitava mármore. Talvez fosse de mármore. Não sei se é possível descrever sabores, e talvez muito menos o deleite que aquilo proporcionava. As sextas-feiras eram feitas daquele momento, as quintas-feiras eram esperas e os sábados suspiros, nunca literatura.

A sentença se materializou em faixas vermelhas na vitrine: queima total. Godiva-less. Detalhes da despedida se ofuscaram nas minhas lembranças, ensombrecidos pelo luto do qual nunca me refiz completamente. A derradeira fatia da torta-mousse: diria que choramos, o que daria uma ficção overdramática. Comemos, este é o fato. E nos apegamos como pudemos ao pavê de chocolate branco do Amor aos Pedaços.

É claro que não foi do dia pra noite, pois essas transições levam tempo. Fizemos o jejum necessário para que o novo vício se consolidasse. O pavê do Amor aos Pedaços oferecia algumas poucas vantagens em relação à defunta: era possível escolher o tamanho, logo era mais fácil controlar as despesas. Era possível também pedir a tal raspinha, que muitas vezes era acrescentada depois da atendente já ter pesado o doce. E havia mais lojas do Amor aos Pedaços pela cidade, e portanto não éramos mais reféns da expansão do Barra Shopping. Não que nos aventurássemos para o desconhecido, mas havia um alento geográfico na nossa gula.

Não foi apenas a (minha) mudança de colégio que interrompeu as sextas-feiras glicêmicas com a minha melhor amiga. Por uma série de fatores, nebulosos como o último pedaço da torta-mousse da Godiva, comer o pavê de chocolate branco do Amor aos Pedaços deixou de ser um programa, e com o tempo, a idade, os hábitos, etc. deixou de ser algo que eu me lembrasse de fazer. Brigadeiros começaram a parecer a opção mais fácil, e tudo na vida passou a ter esse tipo de funcionamento: mais fácil.

“Tente a torta alemã”, alegaram alguns, em momentos em que confessei meu passado de Amor e Godiva. Tolos. A torta alemã, vulgarizada e massificada, exposta nas mais duvidosas vitrines de padarias e biroscas, jamais teria efeito semelhante ao que os antecessores provocavam. De certa forma, continuei fiel ao pavê de chocolate branco, frequentando mais shows do que gostaria no Canecão, apenas para degustar a iguaria na loja do Shopping Rio Sul. Vezes mesmo houve em que fui ao tal shopping apenas para isso: um pedaço de doce. 

Qual então, foi minha surpresa (e minha conclusão) quando, numa terça-feira, disposta a faltar aula e não jantar para ir até Botafogo, estacionar o carro e apontar pra vitrine onde estariam, lado a lado, o pavê de chocolate branco e o preto, entre merengues, tortas, bolos e afins e declarar: quero inteiro, como outras vezes fiz, a fim de presentear os amigos do trabalho, da universidade e quem mais tivesse estômago, insulina e créditos com a balança; qual foi minha surpresa quando descobri que não existe mais Amor aos Pedaços no Rio de Janeiro. O pavê de chocolate branco mais próximo custa, agora, o preço da ponte aérea mais o táxi de Congonhas até o Itaim.

Neste desfecho desolador, a certeza: toda a trajetória gulosêimica é como aquela das bolinhas-de-queijo: uma luta injusta contra o mundo. 



domingo, março 17, 2013

Efeméride - vol. 2


Queria estar onde ele está, e o único âmbito em que me consta que nos encontraríamos é o passado, o não ser e no entanto ter sido. Se fosse passado, pelo menos eu me igualaria a ele nisso, já é alguma coisa, e não estaria na situação de sentir sua falta nem de me lembrar dele. Estaria em seu mesmo nível nesse aspecto, ou em sua dimensão, ou em seu tempo, e já não permaneceria neste mundo precário que vai tirando nossos costumes. Nada mais se tira de nós se nos tiram de cena. Nada mais se acaba para nós se alguém já acabou.

Javier MARÍAS. Os enamoramentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


sexta-feira, março 15, 2013

Efeméride

“Perante o vazio, [o bailarino] está só, de uma solidão que o arranca para fora de si. Está só e fora de si. O seu gesto vai na direção dos outros corpos. Como dançar esse gesto? Como fazer? ‘Fazendo-o’, diz Cunningham.”
José GIL. Movimento total. O corpo e a dança. Lisboa: Relógio d`Água, 2001.

Filha, anote meu telefone. Eu sou espírita e tenho uma coisa pra você. Foi o que disse, ipsis literis, a senhora que emparelhou ao meu lado, em Botafogo, a caminho da volta às aulas. O ceticismo decide que é golpe, mas a vontade acelera um pouco a cadência do peito. Perco a mulher de vista. Na Casa da Empada um temporal se arma, e entre Deleuze, Artaud e Pina um planeta retrógrado indica que é um tempo favorável para releituras – foi o professor que disse, rindo encabulado por resolver acreditar em astrologia. Duas semanas depois, Deleuze guarda os seus ecos, sua voz, e eu não encontro estômago pra estudar.

Perto da impressora do trabalho, depois de uma reunião cujo tema era Clarice, encontro uma barata morta. “Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu” – está lá, na primeira página da Paixão segundo G.H. Se isso é coincidência demais?

E não é coincidência também que, depois de ouvir “Space oddity” pela centésima vez, só ontem eu tenha me dado conta de que o Major Tom morre no fim da música? Achei tristíssimo.  Chorei potes.

As pessoas morrem. E chega o dia que faz um ano que elas morreram.