terça-feira, dezembro 31, 2013

Natal


O dia da faxina é segunda-feira: a sua é a história de amor mais triste de todas, ela disse, entre uma colherada de canja de galinha e outra, e eu pensei que 90% do tempo que estou viva e consciente (acordada) consigo não pensar nisso, mas que quando os 10% batem é como uma locomotiva que descarrila e não sobra ninguém e a gente muda de assunto, fala de viagens, desses destinos onde chove sem trégua, fileira de poças e lenços de papel e aquela impressão de que os ossos ficam úmidos, as articulações ficam rangendo e o corpo se torna esse porão com tantas camadas de lã e tecidos protegendo móveis, joelhos que falham, quadris que deslizam um pouco para fora do lugar – e todos esses cartões postais por escrever – e é como se andar te maltratasse a ponto de você passar tardes cochilando num quarto de hotel, até o dia de pegar um trem, desembarcar numa plantação de cravos and so all else above sonhar que todo ano essa volta seria possível, esses dias em língua estrangeira e schnitzel em excesso, todo o tempo do mundo para observar vitrais em catedrais góticas, e esse domingo ameno feito de papel de presente e embrulhos coloridos, piadas e mapas pra colocar em dia, esse domingo adiando a constatação de que a poeira está sempre ali, à espreita, basta arrastar o sofá. 

domingo, outubro 27, 2013

Um discurso amoroso


e bilíngue para o casamento de C. e P., com todo o coração. 

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Queridos,

Uma confissão: para escrever este pequeno discurso li livros, fiz pesquisas, enquetes, conversei com veteranos bem sucedidos no assunto... e meus rascunhos continuavam um misto de clichê, cafona e, pior, acadêmico.

Pensando naquele poema do Fernando Pessoa (“Todas as cartas de amor são / ridículas / Não seriam cartas de amor se não fossem / ridículas”) concluí que os discursos de amor também só poderiam ser ridículos. Exceto o do Barthes, é claro. O que não ajudou em nada.

Então um dia ouvi no rádio uma música que a certa altura diz: “E até quem me vê / lendo o jornal / na fila do pão / sabe que eu te encontrei”* e pensei naquela primeira vez que a C. me falou do P., e naquele momento eu entendi que a fila do pão, do banco, do aeroporto nunca mais seriam problemas pra ela.

Portanto o que eu desejo para vocês agora é que aproveitem muito aquele aparelho de som incrível que P. comprou e que não deixem faltar música em casa: para encontrarem a afinação todos os dias, para aprenderem um o ritmo do outro, para que o encontro de vocês seja sempre uma dança com os passos que vocês inventarem juntos, esses que driblarão eventuais descompassos e notas fora do tom. E que vocês possam dançar a toda hora e em qualquer lugar, até na padaria – ridículo é falar de amor, vivê-lo é uma sorte!

Com carinho,


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Avant d’entamer ce petit discours, une confession : j’ai lu des livres, fait des recherches, des enquêtes, j’ai parlé à de grands orateurs et mes brouillons restaient clichés, kitschs et, pire encore, académiques.

J’ai pensé au poème de Fernando Pessoa (“Toutes les lettres d’amour sont / ridicules / Elles ne seraient pas des lettres d’amour si elles n’étaient pas / ridicules”) et j’en ai conclu que les discours d’amour ne pourraient qu’être pareillement ridicules. Sauf celui de Barthes, évidemment. Ce qui ne m’a pas aidée.

Jusqu'au jour où j’ai entendu une chanson à la radio : “Et même ceux qui me voient / lire le journal / faire la queue à la boulangerie / savent que je t’ai rencontrée” et j’ai alors repensé à la première fois où C. m’a parlé de P., et  comment, à ce moment-là, j’ai compris que faire la queue dans les boulangeries, les banques, les aéroports ne serait plus un problème pour elle.  

Ce que je vous souhaite, c’est que vous profitiez pleinement de l’incroyable chaîne que P. a achetée et que la musique ne manque jamais chez vous : pour que vous trouviez le ton juste chaque jour, que vous appreniez le rythme l’un de l’autre, pour que les moments passés ensemble soient toujours une danse avec des pas inventés par vos soins, ces pas qui esquiveront d’éventuels décalages et fausses notes. Et que vous puissiez danser à n’importe quel moment et n’importe quel endroit, même dans la boulangerie – parler d’amour est ridicule, le vivre est une grande chance !

Avec tendresse,

Jules


* Último romance, Los Hermanos


terça-feira, outubro 08, 2013


Eu também quis expor o meu buraco como um zero flutuante entre dois ventiladores ligados diante da plateia silenciosa, estupefata ou apenas indiferente. Eu também fingi ter visto Halley atravessar o céu, eu também usei frases dos meus livros prediletos como se fossem minhas. Eu também tive pesadelos com um país de sincronias infernais em que todos os sapatos faziam o mesmo estalo ao tocarem o chão. Eu também nunca acreditei na existência de um sexto sentido e imaginei que o mundo terminaria no auge como uma frase de Flaubert. Eu também sonhei que guiava minha próproa ambulância. Eu também, como num filme de Lynch, nunca vejo o rosto de quem me persegue. Eu também como num filme de Lynch não sei aonde estou indo. Eu também como num filme de Lynch vejo coelhos nas tarefas mais domésticas. 

Coelhos e louça suja por toda parte. 

(...)

Tanta coisa pode surgir das elucubrações de um jovem solitário em algum lugar isolado. O mais difícil é viver a vida no atacado e no varejo e saber que tudo não passa de falta de sincronia, ovulação e violência consentida.

Laura Erber, Os esquilos de Pavlov


sexta-feira, outubro 04, 2013

Diários da yoga - vol. I da retomada

No fim da prática (e não aula), sentados na mesma posição do início, o professor faz as devidas considerações, pronuncia algo que eu nunca entendo e todo mundo se inclina pra frente e fica ali com a cabeça sobre as mãos em prece por um tempo indeterminado enquanto eu só penso “mas o que diabos”. Eu poderia perguntar – e eventualmente aderir – mas têm esses mundos nos quais eu permanecerei para sempre como mera observadora. A constatação começa antes, quando misturo meus lindos sapatos aos tênis e chinelos (enfeitados com miçangas) que ficam na porta do Studio de Yoga onde vim dar. É incrível que tanta coisa evolua, exceto a estética hippie. 

Se eu fui fazer natação a primeira vez por causa de um número da piauí, é natural que eu tenha ido parar na yoga outra vez depois de editar um livro (mais ou menos) sobre, o que me faz temer o meu futuro pós pós-graduação.

De certa forma, a yoga é o mais próximo que tenho conseguido de todas as teorias sobre o corpo que tenho lido. Ali o professor te incentiva a “encontrar seu corpo confortável”, a conhecer seus limites e se deixar transportar pelo fluxo da sua respiração. Seria lindo não fosse um tédio. Pior: cafona. Não tem corpo sem órgãos que se constitua, e o único devir que eu experimento é o da dor. No fundo a yoga é um misto de RPG (as in Reeducação postural global, não o jogo) com autoajuda. É um “deixe seus problemas lá fora” seguido de um “aproveite este momento que você escolheu para dedicar-se a si mesmo”.

O fato é que eu sou muito influenciável, e que a minha permanência na yoga se deve muito mais a coisas aparentemente sem importância, mas que se grudam em mim de forma irremediável.

Por exemplo: eu comentava com a minha avó as agruras da prática e do discurso, e ela me contou que o professor Hermógenes, um mito da yoga carioca, foi cadete do meu avô no exército. O meu avô fazia os maiores elogios ao professor Hermógenes, e por mais que não tenha lógica alguma, lá fui eu, renovar o plano mensal e me comprometer com os mantras até dezembro. Eu não conheci o meu avô, mas a essa altura já deu pra entender a minha linha de raciocínio. Acho.

É como quando encontro T. nos lugares e momentos mais improváveis: na bienal do livro, num cruzamento no Leblon, e a gente recebe esses acontecimentos como um plano celestial maior e que de repente se revela tão óbvio. Sempre me perguntam por você, a gente diz. Ele segue na moto, eu desenrolo o tapetinho verde e de repente me dá uma cãimbra daquelas que só pode ser praga de alguém. Mas penso na minha avó, no meu avô, naquela hérnia de disco de seis anos atrás, e lá no fundo da minha cabeça aquela música do Lulu Santos fica se repetindo: “Eu ando tentando ver o lado zen / o que é que nos ensinam nossos mesmos velhos males”. Gostar de música pop, nessas horas, é uma merda.


Essa noite, na sala de espera, todo mundo tem mil palpites sobre a energia, e tem uma líder que se encarrega de fechar as portas que dão acesso à sala da prática, pra preservar aquele ambiente dos maus fluidos. Se energia tem a ver com alergia, então tô nessa também, mas desconfio de que, tal qual aquele trecho de uma música dos Strokes (“In spaceships they won’t understand / And me I ain’t ever gonna understand”) esse seja outro papo sobre o qual eu não entendo patavinas. 




sexta-feira, setembro 27, 2013

Assum branco - vol. III

Que dias há que n’alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei por quê.


Camões

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Identifico-me ao porteiro, que trata logo de abrasileirar as coisas, e assim entro em casa de Manu. De repente é muita gente com o mesmo nome nos meus dias, e eu penso se isso é evidência de alguma coisa: pretexto, horóscopo ou um destino inescapável – cancelar o inverno alemão e ir ler Pessoa à beira-mar.

Mas ainda é quinta-feira, Manu tem um sotaque francês que eu adoro, uma habilidade para fazer coisas – tranças, cartões, cadernos – e talvez seja o mês, o horóscopo ou um pretexto: tem sido muito difícil não gostar das pessoas, de pisos de taco, das calçadas do Flamengo.

Na janela L. e eu falamos de encontros – ainda que pela metade – e trocamos um daqueles abraços que só mesmo na primavera, e  agora parece-me impossível narrar isto que ainda se dá em algum lugar de nossas barrigas e ressacas, porque Manu faz de suas delicadezas carimbos – reais e metafóricos – e eu não tenho preparo emocional para tanto: uma poção mágica da Mongólia; um foie gras feito pela avó já falecida, armazenado em pote datado; a foto da avó, de negro, imponente; hortelã com rum em copos de geleia com enfeite artesanal feito com a mão dela – e penso nos copos do Pedro e quero ter uma casa toda assim, com objetos transformados, coisas que eram outras, interferências – conquistar um território.


E toda aquela revoada de pássaros espalhada por ali, ou nuvens, porque tem sempre alguma coisa que voa em dias assim. 




segunda-feira, setembro 23, 2013



Quero dizer que se todos nos importamos com comer imediatamente, importa-nos ainda mais não desperdiçar apenas na preocupação de comer imediatamente nossa simples força de ter fome. 

Artaud em O teatro e seu duplo




sexta-feira, setembro 20, 2013

O dia que jantei com César Aira

pessoas são permeáveis ou impermeáveis, mãe? 

Muito antes de tudo isso acontecer eu tinha andado por Santiago atrás de todos os livros possíveis do Alan Pauls e do César Aira. Eu tinha até pensado em mudar o destino, desembarcar em Buenos Aires, entrar numa livraria e sair um ano depois, hablando sola e cantando uma música do Devendra, uma que talvez ainda nem existisse, mas que meses depois seria mais ou menos a trilha sonora perfeita daqueles dias.

Antes, também, num café com P., a gente tinha trocado figurinha sobre alimentação saudável: o que M. achava impossível, visto que eu era irônica demais para ser hippie; o que L. achava meio hilário, a ponto de revelar que houve um tempo até que eu passava ghee no olho (e Aira riu) – o que não nos impediu de encher a cara de cerveja e pão com manteiga, mesmo que eu estivesse com a pior dor de garganta do mundo e que a nossa mesa fosse praticamente numa esquina onde ventava pacas.

César escolheu o magret por causa do comissário Maigret, e eu ri lembrando da aula de francês em que desisti do Simenon por ter chegado à conclusão que Madame Maigret era uma submissa e que seu marido era um machista. Sim, eu já fui dada a extremismos, muito antes de tudo isso acontecer.

Tentamos arrancar dele o que fosse, desde as declarações mais banais até um spoiler de um livro futuro. Conseguimos uma ideia para uma novela que ele gostaria de escrever, mas foi P. quem me fez rir de novo, dessa vez para todos, quando disse que tinha comprado uma centrífuga e que incluíra o episódio do suco verde em sua peça de teatro – o que ao mesmo tempo me fez ficar vermelha de vergonha.

César ficou ali à deriva em meio ao nosso português, a uma ou outra declaração não-ortodoxa sobre a vida conjugal de Alan Pauls (chacun son coluna social) e outras gentes mais próximas, algumas delas em estado de pré-surto (ou cocaína, como sugeriu M.). No fim da noite o mistério permanecia no meio sorriso insistente de César, e quando ele pediu uma sobremesa de morangos fui sensata o suficiente para perder a piada óbvia e sem graça que eu poderia fazer – obrigada, a quem quer que seja o responsável.


O fato é que aquela combinação de morangos com o vento e o cigarro que César fumou depois – e que eu fumei junto em pensamentos – pareciam a mim muito fieis a duas novelas que ele já tinha escrito, que eu lera embasbacada, que eu não sabia mais quantos delírios continham, e eu fiquei quietinha vagando pela minha cabeça de leitora paranoica. Mas é incrível: assim como livros, tem vidas que não existem, e eu fico monga em eventos desse porte. Hay que aceptarlo




quarta-feira, setembro 18, 2013

Yoga for dummies

Voltei ao mundo om, mas a verdade é que toda vez que deparo com um texto de alguém que nada meu coração se treme todo. Clica aqui, desça um pouco e lá estarão os versos do Ismar. 

Enquanto isso, um soft opening por esse outro caminho.



segunda-feira, setembro 16, 2013

Assum branco - vol. II

(outros sinônimos)

Ali naquela conversa eles planejavam fazer mesas com as próprias mãos – é o que os artistas perseguem, não é? Deixar seu rastro. Da outra vez que estive ali havia um martelo displicente sobre uma pilha de livros e eu comecei uma coleção de fotos dos cantinhos, dos ramos de flores, das folhagens na cozinha, das fotos e postais. Desta agora o desenho da porta emoldurado na parede, maços e maços na varanda, uma briga que eu nem sei se acabou bem, um hematoma na perna direita que me faz crer que nos atacamos.


Entre uma dose de vinho e outra, na confusão dos copos de requeijão Aviação que nos serviram de taças, no barulho que 12 pessoas fazem juntas numa tarde, Pedro puxa uma cadeira e me conta de suas aulas de teatro, da temporada, da tentativa de entender o que acontece consigo depois de experimentar estar em cena, seu corpo, sua carne – eu quase choro, porque ele sabe que aconteceu um troço meio mágico que ele não dá conta de explicar, e sinto saudade de sentir isso também, e devoro tomates quando ele diz que está dançando. Pedro está dançando – uma caixa de surpresas – e tem como mestra uma ex-bailarina de Pina Bausch – e eu vejo toda uma vida que eu poderia levar em Pinheiros, vizinha da cozinha com piso de ladrilhos, da estante de livros que contém dois Suicídios exemplares emparelhados, do armário amarelo. Pedro está dançando  eu esqueço de contar para ele que comprei passagens para Wuppertal – e com certeza ele vai entender tudo o que precisa. 




quarta-feira, setembro 11, 2013

Assum branco*


Onde está teu sinônimo no mundo?
Clarice Lispector, Um sopro de vida

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Estou obcecada por uma música tão linda quanto triste* e não sei o que fazer, eu disse a ela. É como se eu perseguisse uma melancolia. Faz sentido?, eu perguntei e ela riu. Deve fazer. 

Perguntei, também, se era muito cedo pra falar dele, e é claro que era, e ela concordou. É que aquele dia, no sofá, tudo o que ele falava eu emendava, exceto o final: comecei a chorar naquele segundo ato (eu também); e aquela neve (eu também); e não conseguia parar (eu também); e como é que se levanta da cadeira depois? (eu também); eu estava bem perto do palco, peguei um pouco da neve e guardei no bolso do casaco (ele disse, e como é que se levanta do sofá depois? E, de alguma forma, acho que ainda estou por ali, esparramada sentindo o peito dele subir e descer.)






quinta-feira, agosto 29, 2013

Moradas

En la mano crispada de un muerto,
en la memoria de un loco,
en la tristeza de un niño,
en la mano que busca el vaso,
en el vaso inalcanzable,
en la sed de siempre. 


Invocaciones

Insiste em tu abrazo,
redobla tu fúria,
crea um espacio de injurias
entre yo e el espejo,
crea um espacio de leprosa
entre yo y la que me creo.

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explicar con palabras de este mundo
que partió de mí un barco llevándome



Alejandra Pizarnik






segunda-feira, agosto 05, 2013

1923

A minha avó, naquela manhã, mais parecia uma estrela de cinema ou uma imagem sagrada, dessas que todos querem tocar e adorar. A cabeça branca da minha avó – cor de neve brilhante, anos de xampu especial – se via de longe rodeada por outros cabelos, muitos adornados de brilhos e flores de domingo. A minha avó, naquela manhã, recebeu cumprimentos, apertos de mão, abraços e exclamações que saíam pelas mãos e pelos sorrisos de todos que foram parabeniza-la pelos seus 90 anos.

A minha avó, naquela manhã, desceu do carro em frente à estação ferroviária de Nilópolis, subiu as escadas da igreja apoiando-se no corrimão – que ela julga indispensável – e sentou-se no terceiro ou quarto banco do lado esquerdo. Recebeu as saudações do Frei José – que há uns 40 anos atrás casou uma das minhas tias, e que há uns 30 anos atrás me batizou, e que já fez outras bênçãos para a família – e acompanhou uma missa repleta de crianças, cantos, palmas e gestos, aqui e ali, que interpretavam algumas das canções. Minha avó subiu ao altar ao término do culto e leu, encabulada, palavras sobre as graças de se fazer aniversário. Minha avó rezou, levou uma salva de palmas e à saída comeu um pastel de queijo típico de feira, iguaria disputadíssima pelos fieis dali.

A Paróquia de Nossa Senhora da Conceição recebeu a minha avó com tanto carinho que quase que ela teve que sair fugida, pois cada um que ia cumprimentá-la queria também falar com as filhas e a neta a tiracolo. A Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, naquela manhã em que a minha avó parecia uma estrela, me deu a exata noção da ideia de comunidade, e uma inveja tão grande do subúrbio que, no caminho de volta, olhei praquelas casinhas imaginando a minha avó por ali, comendo bolos e gostosuras de uma vizinhança que jamais a deixaria voltar pro Leblon – e nem suas filhas e neta a tiracolo.

A gente vai passando pelas pessoas no dia a dia, e aquela gente dali vai parando pelas pessoas, numa tônica tão distante da nossa, e tão mais lógica. A minha avó, de fato, é uma estrela, e o subúrbio desperta mesmo uma ternura, porque é justamente o que emana. E suas filhas e neta a tiracolo, que sorte, provaram desse espelho, lugar que é contra a assepsia dos afetos.

Na volta pra casa eu fui pensando em alguns poucos sambas que sei cantarolar, e em como muitos deles nasceram desse sentimento de pertencimento, de uma relação com o seu lugar. Velhas rixas que compuseram hinos declaratórios a diversos berços, ou apenas odes a seus morros e feitiços. Tem alguma coisa nisso que eu queria pra mim. Eu não sei a minha avó mas eu, quando cheguei em casa, nem tomei banho e passei aquele dia sem lavar as mãos, querendo guardar um pouco mais, com um cd do Noel Rosa no som. Desconfio de que ela tenha feito o mesmo. 



quarta-feira, julho 24, 2013

Sala de espera

Eu limpava os óculos pela terceira vez ao dia – e ainda nem eram 11 horas – enquanto pensava em você. Não que eu precise de justificativas para pensar em você. Ou para limpar meus óculos. Se você usasse óculos saberia como é: acordar, lavar o rosto, pô-los na cara. É parecido como quando um par novo de óculos fica pronto: as lentes deste sempre parecem melhores que as do antigo e é como se você nunca tivesse realmente visto as coisas antes. Talvez seja que as lentes realmente melhorem. É uma indústria, vai saber. É assim que se começa uma coleção, que numa perspectiva positivista pode evoluir para uma obsessão. Tenho nove pares de óculos, mas não se preocupe, a sua vista cansada não tarda.

Há um futuro interessante para nós e nossos óculos: todo dia acordar, lavar o rosto, pô-los nas caras. Eu, pra te ver de longe, você, pra me ver de perto, como se nunca tivéssemos nos visto realmente antes. E aumentar as coleções: você com seus dois pares iniciais, eu com cerca de 14 armações – uma soma de 16 possibilidades diárias e matinais para nós. E se somarmos os reflexos das nossas imagens nos óculos um do outro teremos uma conta que eu não sei fazer, e nós e nossos óculos e nossas imagens refletidas –   todos os dias, naquele ritual rotineiro pelas manhãs, exceto aos sábados e domingos, dias de hibernar entre travesseiros, peles e córneas sem lentes, indústria ou acetatos – obcecando juntos.


Pensava em você, limpava meus óculos n° 6 e decidi tudo isso, essa sucessão de hastes, consultas oftalmológicas, graus em declínio ou ascensão, modismos, promoções, qualquer justificativa pra gente se ver todo dia, dormir e acordar todo dia, lavar o rosto, pormenorizarmo-nos a qualquer distância, intermediados por vidros multifocais. Ou cirurgias de cataratas – antes das 11 horas eu já queria toda essa vida com você.  



quinta-feira, junho 06, 2013

top 5

Das anotações do meu caderno de pós-graduação, algumas frases entreouvidas entre um delírio teórico e outro:

1) Dente é patrimônio.
2) Eu queria ser uma vírgula no texto dele!
3) Clarice [Lispector] não fala, Clarice vaticina.
4) O Facebook é um Retrato de Dorian Gray às avessas.
5) Coisa boa é ir pra um motel sozinho com seus livros.

Bônus: "Só gosto do que é melhor em tudo, desde música, desde pintura, até o arroz com feijão."  (João Antonio)




domingo, junho 02, 2013

4 aberturas de romance


Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas. J’ai reçu un télégramme de l’asile: “Mère décédée. Enterrement demain. Sentiments distingues.” Cela ne veut rien dire. C’etait peut-être hier.

Albert Camus, L’étranger 

I did not kill my father, but I sometimes felt I gad helped him on his way. And but for the fact that it coincided with a landmark on my physical growth, his death seemed insignificant compared to what followed. My sisters and I talked about him the week after he died, and Sue certainly cried when the ambulance tucked him up in a bright red blanket and carried him away. He was a frail, irascible, obsessive man with yellowish hands and face. I am only including the little story of his death to explain how my sisters and I came to have such a large quantity of cement a tour disposal.

Ian McEwan, The cement garden 

(No fim, tu morres. No fim do livro, tu morres. Assim mesmo, como se morre nos romances: sem aviso, sem razão, a benefício apenas da história que se quis contar. Assim, tu morres e eu conto. E ficamos de contas saldadas.)

Miguel Souza Tavares, No teu deserto 

No final ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia. Digamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que ele se chama, se chamava e continue se chamando Julio. Julio e Emilia. No final, Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura:

Alejandro Zambra, Bonsai